27 de junho de 2014

Entrevista: João Nery

Essa entrevista demorou a ser editada, pois tudo que João Nery diz precisa ser dito, escancarado e lido. É difícil também escrever cada linha dessa apresentação. Todos deveriam conhecer a história de João, saber o ser humano que ele é e a importância de sua militância. Me limito então a dizer que ele é o primeiro transhomem operado no Brasil em tempos de Ditadura Militar e de ilegalidade da cirurgia e da troca do documento de identidade.
João é autor da autobiografia "Viagem solitária", um livro que indico a todos que quiserem não só saber mais sobre sua história, mas também aos que desejam romper com as barreiras do preconceito. Então, vamos conversar sobre transfobia?

*Para quem se confunde sobre a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero, o Desvio Livre recomenda este link para esclarecimentos: O que é identidade de gênero?

Capa do "Viagem Solitária", João e eu em sua passagem por Ribeirão Preto (SP) e João com seu livro em foto de Márcio Alves.

DL- Existe uma invisibilidade trans dentro do movimento LGBTT e no movimento feminista? 

JN- Nós trans somos invisíveis não só na sociedade, mas também dentro do movimento LGBT, que é um movimento predominantemente gay e as reivindicações são diferentes. 

Tem coisas muito parecidas, mas é diferente. A questão deles é de orientação sexual e a nossa é uma questão de reconhecimento primário de cidadania. De reconhecimento de uma identidade que não é compatível com nossos corpos. 

Na nossa cultura a cidadania é regida basicamente pela genitalidade (órgão genital) então nosso gênero fica secundário, sendo que nós nos definimos a partir dele. No movimento feminista existem correntes que não aceitam trans como mulheres. Mas o feminismo de uma maneira geral é muito importante, representa o combate ao machismo e a luta pela igualdade de gênero. Eu ainda sinto um pouco de preconceito, existe menos espaço para trans e menos ainda para os transhomens. Mas eu sou um transhomem feminista! Sou a favor de todos os movimentos que lutam por direitos. Nós devemos muitas conquistas às transmulheres, que há mais tempo levantam as bandeiras trans.


DL- Como você sente e observa que os trans são representados na mídia?

JN- Somos tratados de forma errada e desrespeitosa sempre. 
A maioria das coberturas trata travesti no masculino, como “o travesti” e é uma desconsideração, uma humilhação. Mesmo quando a matéria tenta falar positivamente, só de tratar no masculino é desconhecer completamente a identidade das pessoas, pois a maioria das travestis são mulheres e querem ser tratadas por ela, querem ser respeitadas. As novelas tratam os trans de uma maneira caricatural, geralmente a trans é representada por um homem cis, um humorista. Por que não contratam trans para fazer papel de trans? Tem tantas, tão boas atrizes! É um campo muito dominado pelas trans, o do palco e o da beleza. Claro que é fundamental ter um espaço na mídia, eu não perco nenhum. Até para um blog particular eu dou entrevista (risos) porque é mais uma oportunidade de ter visibilidade.


DL- Como a transfobia afeta a vida social, familiar, o trabalho e a saúde das pessoas trans?

JN - O número de suicídios é muito alto entre trans, pois a sociedade não nos reconhece em nada. Somos o tempo todo constrangidos para tudo. Para comprar qualquer coisa que você tenha que usar um cartão de crédito já é uma confusão horrorosa, é um constrangimento muito grande. Até para usar um banheiro é uma luta. As travestis não vão ao banheiro, não tem onde urinar sem passar por constrangimento. 

A maioria tem incontinência urinária, cistite e até problemas renais. Isso é comum nos transexuais. A transfobia é o grande sofrimento dos trans. Muitos tem síndrome do pânico e depressão, sobretudo os transhomens. Isso quando a família não expulsa de casa e quando expulsa é um caos. O apoio familiar é fundamental para o transgênero. Mas com certeza os pais não estão preparados para ouvir que os filhos são trans. 

A sociedade não está. Mas aí seu filho vai procurar apoio onde? Agora estão surgindo alguns grupos de mães que estão se unindo, mas é tudo muito recente e embrionário. É trabalho de formiguinha. Não existe levantamento oficial de quantos trans existem no país, para nós não existe IBGE, ninguém sabe nada sobre nós. E tem muitos trans “no armário”, pessoas que não se declaram por medo da transfobia.


DL- Quais são as maiores dificuldades do processo de transexualização pelo SUS?

JN- Segundo o CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) nós somos considerados doentes mentais, então temos que nos submeter a 2 anos de um processo transexualizador, que é feito por uma equipe multidisciplinar. São 2 anos que você tem que fingir que é o trans que eles querem. Quem é trans sabe que é, mas não tem o direito de chegar no consultório e dizer: Sou trans, quero um laudo e preciso me operar. Eles é que vão dizer se você é trans, segundo as normas deles e a visão deles do que é feminino e masculino. É um absurdo! Por exemplo, tenho uma amiga que é trans e foi se inscrever no processo, mas ela foi sem maquiagem, vestindo calça jeans e camiseta e a psicóloga disse que ela não era trans porque ela não era feminina, porque não usava brinco ou maquiagem. Então nós dependemos de pessoas que muitas vezes são transfóbicas. E por 2 anos! 

Eu acho que a terapia só tem validade quando parte da pessoa, você ser obrigada a fazer terapia já rompe isso. Eu sou piscicólogo, sei muito bem disso. Então os trans mentem para atingir as expectativas dos psicólogos para que consigam um papel e possam se operar. Quem é trans e quer se operar faz qualquer coisa para conseguir esse papel. É como um alistamento militar. E muitos médicos pedem esse papel mesmo no sistema particular, o que é raro para os trans, ter dinheiro para fazer pelo sistema particular. Mas nem todos os trans querem se operar. Digo que a cirurgia não muda o sexo de ninguém, as pessoas já são o que são, é apenas para uma satisfação pessoal e social, assim como outras cirurgias plásticas. No caso dos transhomens, a cirurgia de transgenitalização nunca é feita porque no Brasil a neofaloplastia é considerada como experimental. Só pode ser feita em hospital universitário, o que é mais uma limitação e demonstra o preconceito da medicina com os trans. Se um homem perder o pênis por gangrena, câncer ou outra doença ele pode fazer a neofaloplastia em qualquer hospital sem laudo, pois para ele não é experimental. Tinha que se ampliar a rede do SUS para trans no Brasil, atualmente se faz 1 cirurgia por mês em cada SUS, ou seja, por ano cerca de 48. Há sempre uma justificativa de que não há médicos, ou que o urologista tem que atender outros homens. É uma guerra, em todos os sentidos. 


DL- O acesso à educação e ao mercado de trabalho é muito mais difícil para os trans. Quais são as dificuldades enfrentadas?

JN-Nós sofremos transfobia desde a escola. Somos considerados culpados de sermos o que somos e por isso merecemos castigo. Sou a favor das cotas para trans nas universidades. Mas é uma questão mais ampla, o trans já para de estudar antes do Ensino Médio porque não aguenta a transfobia na escola. Vivemos numa sociedade opressora, transfóbica e violenta, então o trans não consegue chegar até a Universidade. A implementação de cotas seria uma das medidas provisórias para as trans terem ao menos uma chance, uma perspectiva. Seria uma forma de forçar a barra da visibilidade. Para os transhomens é diferente, pois o efeito dos hormônios para nós é mais rápido e mais eficiente, então nossa aparência “engana” com mais facilidade. Isso não nos dá garantia de conseguir emprego, mas nos dá menos transfobia na rua. Porém ao apresentar o documento na escola ou no trabalho é o mesmo problema. A travesti e principalmente as mulheres trans que tem o feminino muito forte e a maioria não se operou ou não quer se operar traz no próprio corpo todo o rompimento das normas de gênero, não tem como esconder. São verdadeiras heroínas, elas em si já ameaçam o sistema só por serem quem são. Hoje uma das nossas batalhas trans é o emprego, porque a sociedade não dá oportunidade.No Brasil criamos um site chamado Transemprego onde os trans podem se inscrever e apresentar seus currículos para empresas que aceitam trans. Temos que tentar angariar empresas de grande porte porque até então o fornecimento de empregos é muito baixo.


DL- Como você enxerga o atual cenário de políticas públicas de combate às várias formas de transfobia?

JN- O Brasil é um país altamente homofóbico e transfóbico, a barra é muito pesada. Mas no Governo Lula tivemos grandes avanços. Sem dúvidas o Lula foi o presidente que mais ajudou os LGBTTs, criou algumas secretarias e algumas políticas. 

Com a Dilma houve um retrocesso muito grande porque a política brasileira é muito questionável, pois só se trabalha em alianças e a bancada evangélica é fortíssima e riquíssima. Então eles derrubam todos os projetos LGBTTs que sejam progressistas. Vivemos numa situação em que o judiciário ganhou força em relação ao legislativo. O casamento igualitário foi uma decisão do Conselho Nacional de Justiça e não uma Lei, a Lei foi arquivada. Tem agora a Lei João Nery de Identidade de Gênero que está no Congresso, mas tem que passar por 3 comissões, tá na área de Direitos Humanos e provavelmente sairá a pleito e vai a plenário ano que vem. 

Eu faço uma militância suprapartidária, pela causa dos Direitos Humanos eu sou suprapartidário. Não sou filiado a nenhum partido, nenhuma ONG, nada. Sou um libertário para poder falar o que eu realmente penso sem nenhum comprometimento. 


DL- E quais os caminhos para sermos uma sociedade cada vez menos transfóbica?

JN - Precisamos fortalecer movimentos políticos, mas para isso tem que derrubar esse imenso poder da bancada evangélica. Tem que ter Lei, sem Lei não se garante nada. E as leis tem que ser cumpridas. Aí precisamos também de cursos de orientação e formação de professores nas escolas. Precisamos formar as pessoas da área da saúde, os psicólogos e todos envolvidos na vida e no processo dos trans. Tem que ter participação da mídia em massa ajudando no combate, porém o que temos atualmente é o contrário. Para mudar teríamos que ter um movimento de conscientização em massa, é uma luta ferrenha. Seria uma girada de 180º em todas as esferas dessa sociedade onde a heteronormatividade impera.





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2 comentários:

  1. Entrevista muito pertinente, pois apresenta um assunto complexo de maneira direta e com muita propriedade.

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  2. Sou trashomem e concordo plenamente com isso, estou tendo que esperar 6 meses pra minha primeira consulta, mais 6 meses pra poder pegar o primeiro laudo pra tomar hormônio e mudar de nome, e só Deus sabe mais quanto tempo pra ter meu laudo para a cirurgias, e quanto mais vou esperar na fila de espera ...

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