29 de julho de 2014

Soraia. Das mulheres que amam outras mulheres


Apesar de ser filha de pai militar e mãe professora, ela diz que foi criada com muita liberdade para ser o que é, e que na infância era uma criança inquieta. A mais velha dos três filhos, cuidou da irmã e do irmão entre brigas e brincadeiras. Mas foi aos 16 anos que descobriu um mundo fora da própria casa. Conheceu gente de todas as “tribos” e transitou por todas elas. Nessa época foi hippie, do movimento punk, questionou o mundo, acreditou numa “Nova Era” e até aprendeu a ler tarô. Diz que as experiências dessa fase foram importantes para seu primeiro contato com a diversidade, pois desde criança se percebia diferente, mas não entendia como.

Só na adolescência, quando entendeu o que era ser gay, sentiu individualmente o que era aquilo, mas nem por isso se compreendeu e se aceitou como “diferente”. Soraia, a mulher segura de hoje, dá risada quando fala da menina insegura que foi. Conta que abaixava a cabeça e até atravessava a rua ao ver a vizinha homossexual que a paquerava. Não sabia se por vergonha, ou se por medo de se identificar de alguma forma. E assim ficou por um tempo, evitando o que era.

Aos 18, trabalhando num banco, ela se apaixonou pela voz de uma mulher. Sim, a primeira paixão homoafetiva de Soraia, que a fez se descobrir, foi pela voz da primeira namorada, com quem falava a trabalho diariamente pelo telefone, só a trabalho e só pelo telefone. Foram meses apenas imaginando quem seria a pessoa do outro lado, até que, num encontro anual da empresa, elas se conheceram e o sentimento foi recíproco. Não durou muito, ambas não se “assumiam” gays e não viveram a relação abertamente. 

Depois disso Soraia arranjou um namorado. Foi uma relação rápida, em pouco tempo ela o apresentou à família e se casou, sem o apoio dos pais e sem amor. Durante os cinco anos juntos, tiveram uma relação de amizade muito forte. A separação foi traumática e veio com a percepção de um limite próprio que ela enxergava: o de que não dava mais para viver uma vida infeliz e estática. É daí em diante que ela mostra em sua narrativa a mulher que percebi desde que conheci a Soraia segura, independente e que diz que faz o que tem vontade, mesmo sem saber se vai dar certo ou não. E talvez seja a partir daí também que, em sua própria história, ela se mostrou essa mulher, não só para os outros, como para si mesma.

Quatro anos depois, morando sozinha, fazendo faculdade de Direito e vivendo o primeiro namoro sério com uma mulher, a mãe descobriu seu “segredo” . Apaixonada, Soraia teve o primeiro impulso de alguns que viriam para mudar sua vida. Furiosa ao telefone, a mãe perguntou: "Que história é essa de que você está ficando com uma mulher?" E sem titubear, a filha respondeu: "Ficando não, namorando! E respeito é bom e eu gosto!"
As risadas ao relembrar esses momentos deixam o clima mais leve, provavelmente muito mais leve do que foi, na época, revelar a sexualidade para si mesma, para a família e para a sociedade. O riso espontâneo da entrevistada deixa claro que isso é passado e que toda essa história só tem que ser contada para chegarmos até Amanda, a mulher com quem ela está há seis anos, graças aos seus impulsos. Amanda é tímida, não tem a mesma vaidade de Soraia e tem nove anos a menos que a parceira. O jeito introvertido dela, oposto ao extrovertido de Soraia, talvez tenha sido o elemento chave que as uniu e ainda as une. Tudo começou com uma simples amizade de faculdade, entre trocas de livros no corredor e conversas que duravam horas na internet. Elas se apaixonaram – o que era visível para todos que conviviam com as duas, menos para elas mesmas.


Talvez Soraia tenha evitado enxergar seu sentimento por Amanda porque já estava namorando outra pessoa. Vivia, porém, uma fase ruim, pois a namorada omitia o relacionamento perante a família e no círculo social em que viviam. Pressionada, confusa, mas já se percebendo apaixonada, Soraia teve outro impulso. Terminou o namoro e logo resolveu se declarar. Fez isso pela internet, pegou o carro e dirigiu até a casa de Amanda. Lá as duas conversaram madrugada afora e se beijaram pela primeira vez. Cerca de dois meses depois, ela convidou Amanda para dar um grande passo para a menina de 20 anos, um grande passo para a mulher de 29 que já tinha passado por um casamento heterossexual e, depois, enfrentado um namoro homoafetivo – o mesmo que abandonou para assumir o sentimento pela amiga. Era mais um impulso disfarçado de tentativa: sob julgamentos e comentários negativos, foram morar juntas. 

Quando perguntei para Soraia o que a fez se apaixonar por Amanda, ela não soube responder. Disse que foi acontecendo sem que percebesse. Mas agora, olhando para trás, ela se lembra de um fator que talvez tenha sido decisivo. Amanda se declarou homossexual para a mãe e seu círculo social ainda na adolescência, e topou morar junto com Soraia com apenas dois meses de namoro. Depois de algumas decepções, Soraia viu na menina que só tinha 20 anos a coragem e a segurança que sempre buscou em alguém, ou talvez nela mesma, quando também tinha seus 20 anos.




Os seis anos de casamento foram tranquilos, dividindo as tarefas de casa e a vida cotidiana. Viajaram muito, saíram com os amigos e fizeram “programas de casal”. Está tudo registrado num álbum de fotos e colagens românticas que elas trouxeram para me mostrar. 

A tranquilidade para uma mulher como Soraia não pode durar muito. Ela sentiu necessidade de ser mãe. O famoso relógio biológico despertou e ela decidiu fazer exames para uma inseminação artificial. Não deu certo de primeira e, impaciente que é, depois de relutar contra si mesma, decidiu tentar a adoção. Uma conhecida da família havia perdido a guarda dos filhos e não tinha condições financeiras para criá-los. Entre eles estava um bebê. Soraia e Amanda foram até lá conhecer a criança, mas no último momento a mãe desistiu de doar o filho mais novo. Quando já estavam saindo da casa, uma das crianças, Luana, de 7 anos, correu atrás das duas e agarrou Soraia, insistindo: “Tia, me leve para morar com você. Eu quero ir, eu quero tanto que você seja minha mãe”. 

Elas nunca tinham se visto, Soraia estava confusa e não soube o que fazer. Foram para casa e, em mais um impulso, sem muito pensar que tudo mudaria com a vinda da menina, elas voltaram e a buscaram. O processo legal de adoção está correndo, mas a pequena já se adaptou e já readaptou a rotina das mães. Agora elas são três. A vida de casal perdeu muito de seu espaço para as demandas de Luana: as descobertas, a rotina, os horários e todas as mudanças que podem acontecer com a chegada de uma criança de 7 anos. 

Soraia agora não pode mais ser tão impulsiva, a vida de mãe a está ensinando que a serenidade também precisa de espaço na vida de uma mulher decidida. Ela diz e deixa transparecer no olhar que Luana foi uma grata surpresa, mas ainda se assusta com as novidades de ser e ter uma família. Os amores que transformaram sua vida vieram de repente, sem tempo para serem compreendidos, mas foram intensamente sentidos. Se eles nasceram de impulsos, agora já não faz mais diferença, a diferença mesmo está no que eles se transformaram. Ou melhor, elas.


Luana e as mamães Soraia e Amanda

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