25 de junho de 2014

Alessandra: Das esquinas entre o amor e o sexo


Sexo é necessidade e amor é necessário. Eles não precisam andar juntos e, na vida dela, andam separados, é assim que funciona. É assim que tem que funcionar. Trabalha na mesma esquina há dez anos, é prostituta, é travesti. Não se importa se a chamam de “ele” ou “ela”, desde que seja com respeito. “Afinal, sou gente né, uma pessoa normal.” Eu escolho chamar de ela, pois é o que vejo diante de mim.

Alessandra não tem uma história de amor que transformou sua história, considera que ela mesma a transformou. Sua conclusão hoje, aos 38 anos, é que o amor existe, mas ela não teve “sorte com isso”. Acredita que ele é necessário para viver, o amor em Deus e na família. 

Foi criada na igreja evangélica, entre dez irmãos. A mãe era empregada doméstica e é sua referência de chefe da família, pois o pai morreu cedo. Não tem muitas lembranças boas da infância. Foram várias voltas da escola chorando por causa dos xingamentos dos meninos e da falta de compreensão sobre como era diferente deles. Teve uma adolescência revoltada, tentando entender a própria condição. Foi prestando suas obrigações de homem, durante o serviço militar, que percebeu e aceitou que se interessava por eles. 

Depois disso, trabalhando como entregador de pizza começou a sair com rapazes e teve seu primeiro amor: uma paixão platônica por um colega heterossexual. Mas ainda não se sentia bem, não se sentia no corpo certo. A decisão de tomar hormônios e começar a se transformar veio aos 22 anos, depois de muito pensar e sentir seus conflitos mais internos.

Todos os irmãos sempre a aceitaram bem e nunca causaram desconforto ou brigas em função da sua sexualidade. Mas por causa da não aceitação da mãe, que por questões religiosas condenava seus atos e a forma como queria ser, ela teve que sair de casa. Foi morar sozinha e elas ficaram cerca de três meses sem conversar. Nessa época ela perdeu uma irmã num acidente de carro e a morte inesperada fez com que toda a família se unisse pelo sofrimento. De forma trágica, a mãe pôde enxergar que o fato de ela ser travesti pouco importava, pois estava ali e, de toda e qualquer forma, ainda era sua filha. Voltaram a morar juntas.
Ilustração de Emerson Porto

Todas as modificações necessárias para transformar seu corpo lhe custaram caro e o emprego de moto-táxi não era o suficiente. Além disso, ela já não se encaixava mais no meio social heteronormativo, em que tinha que ter vida dupla para ser quem era. Quando começou a frequentar a noite de baladas gays e ter contato com outras travestis, tomou coragem e fez seu primeiro programa. Aos poucos abandonou o emprego e passou a se sustentar só com a prostituição. 

Ela gosta do que faz, sente prazer, sente-se mais mulher quando percebe que os homens a desejam, pagando para estar com ela. Tem inúmeras histórias de noites memoráveis e de homens inesquecíveis. Reconhece que existe um “status” para a profissional do sexo e sabe que, no meio em que vive, muitas estão na rua não só para pagar as contas, mas também para sentirem-se poderosas e recuperar a autoestima que não possuem durante o dia, quando andam na rua sob julgamentos, comentários maldosos e humilhações. Alessandra conta que acha cruel o ambiente da prostituição entre travestis. A inveja e a competição nesse meio, para ela, é uma grande incoerência. “Somos maltratadas pela sociedade, já fui roubada à mão armada, ameaçada e agredida, e nunca tive o direito de ser bem atendida numa delegacia, de fazer ao menos um boletim de ocorrência. Somos tratadas igual a bandido, sem dignidade alguma, então deveríamos ser unidas e não disseminar essas coisas ruins também entre a gente”. 

Minhas perguntas são indiscretas. Falamos sobre sua rotina como profissional do sexo, seus envolvimentos amorosos, sua relação com o dinheiro e com o futuro. Mas as perguntas que fazem Alessandra pensar e responder, desconcertada, não são aquelas que me deixariam sem graça. Poucas coisas a incomodam tanto quanto falar de futuro e de expectativas em relação às pessoas e a algumas situações. Diz que sabe que, com a idade, a hora de se aposentar das ruas logo chega e prefere não imaginar como será sua vida depois disso. 

Com os relacionamentos que teve e as vezes que amou alguém, aprendeu a não confiar plenamente no amor de um homem. “Já fui uma mulher apaixonada, que via tudo cor de rosa. O último me prometeu durante dois anos largar a relação heterossexual com a namorada. Se acomodou comigo, que dava a ele presentes caros e o ajudava financeiramente. Mas nunca me assumiu.”

André Dahmer

Falar sobre preconceito e as maldades do mundo a deixam num misto de tristeza e revolta. Percebo que o preço que ela paga por ser como é afeta também sua vida amorosa, mas preferimos acreditar que ela é daquelas mulheres que não teve sorte com essa coisa de amor... E, para enxugar as lágrimas e a dor de cotovelo, melhor remédio não há: o sexo. “Eu gosto de fazer programa, pois é uma forma de escapar dessas coisas de amor. Penso que, se não for ele, vai ser um monte.” 

Ela oscila entre mulher madura que assume suas posturas e alguém que ficou no caminho de uma sociedade que não lhe dá os mesmos direitos e oportunidades concedidos a outras mulheres. É puta sim e gosta do que faz, mas não é só isso, diz. Repete diversas vezes que é uma mulher comum, que gosta de conversar e não só de transar, virar as costas e ir embora. Não faz nenhum personagem quando está na rua, se assume como é e, segundo seus clientes, é esse seu diferencial. 

As palavras de Alessandra me mostram várias mulheres. Ao defender a união entre as prostitutas travestis, ela poderia ser uma ativista política da causa LGBTT. Quando fala da importância da fé e da crença em Deus, poderia até ser uma freira. Quem a vê sorrindo ao falar dos sobrinhos pequenos que a chamam de tia, vê nela só mais uma tia coruja, como qualquer outra. Se o assunto é sonho, ela parece uma criança ao dizer que queria ter o poder de salvar o mundo, todo mundo. Ao falar de dinheiro, não tem ambição. Se ganhasse na mega sena, usaria o prêmio para quase salvar o mundo. 

E de tantas curiosidades, pudores e imaginários, eu saio de sua casa enxergando sem esforço o que ela precisa e tenta provar diariamente: que é só uma mulher comum... Dessas que só dizem sim, por uma coisa à toa, uma noitada boa, um cinema, um botequim.[2]


[2] Trecho da canção Folhetim, de Chico Buarque de Holanda (álbum Ópera do Malandro, 1978)


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