9 de março de 2015

Sobre Amélias, Genis e Madalenas

 Ilustração de Ana Maria Sena
O despertador toca 6:00 da manhã. Dani acorda. Está com sono, foi dormir quase 2hs da manhã porque estava terminando um trabalho da faculdade. Coloca seu uniforme, toma café correndo, escova os dentes, guarda as apostilas e uma troca de blusa na bolsa. Depois de sair do trabalho ela vai direito pra aula. Tem que andar um quarteirão até chegar no ponto de ônibus. Ela caminha depressa, mas dá tempo de escutar um “Bom dia, delícia” que vem do outro lado da rua. Segue de cabeça baixa, se não fosse o medo ela responderia e encararia o agressor que vive a assediando toda vez que passa por ali. Chega no ponto e logo o ônibus passa. Lotado, é horário de pico.

Na outra ponta da cidade está Michele. Ela já está acordada desde 4:30 da manhã. Ainda estava escuro quando foi com os filhos para a fila da Creche Municipal tentar duas vagas. O mais velho tem três anos e o outro dez meses. Desde que foi abandonada pelo marido, ela vive dias de batalha para garantir o que dar de comer a eles. Michele está feliz porque arranjou um emprego como auxiliar de limpeza, mas está com medo de perder a oportunidade caso não consiga as vagas na creche. 

Patrícia está no trânsito a caminho do escritório onde é uma das sócias fundadoras junto com o marido, Willian. Sozinha, dentro do carro trancado, blindado, o vidro fumê e ouvindo um de seus cds preferidos de música clássica. Todo dia o mesmo trajeto, a mesma melancolia. São os minutos diários em que ela sempre está certa de que vai desistir. Ela não ouve e nem vê a menina que bate em sua janela pedindo moedas. Todos os dias ela pensa em Bianca, a filha que um dia quis ter. Não teve, fez um aborto. Carrega o peso da culpa e quando pensa nisso, chora. O semáforo fica verde, ela avança. 

Dani se espreme entre os passageiros do ônibus após passar na catraca. Não tem lugar para sentar. Consegue ao menos ficar perto da porta de saída para descer assim que chegar ao seu destino. 
Todo dia é o mesmo sufoco. Muitas mulheres no ônibus, de todos os tipos. Muitos homens no ônibus, de todos os tipos. Um deles insiste em se esfregar nela toda vez que o veículo balança. Ela olha brava, mas não fala nada. Ele sorri. Está uniformizado, deve ser casado e ter filhos, ela pensa. Um homem de bem... Nojo é só o que ela sente, todos os dias.

Michele finalmente consegue ser atendida na creche. A diretora pede para que ela preencha um cadastro e enquanto isso faz algumas perguntas:

- Quantos anos você tem? Parece tão jovem...

- Tenho 21.

- Nossa, 21 e já tem 2 filhos? É casada, pelo menos?

- Não, já fui. Casei cedo, mas meu marido me deixou depois que tive esse mais novo.

- Terminou os estudos?

- Não deu tempo não. Tava quase, mas meu marido era mais velho, sabe? Quando a gente tava namorando ele morria de ciúmes de eu ir pro colégio. Acabei parando, engravidei. Lá em casa meu pai sempre achou mais importante eu casar, dizia que estudar era coisa de menina rica e quem vinha de onde eu vim não tinha chance. Quando engravidei ele ficou bravo e me mandou ir morar logo com João. Um dia quero terminar os estudos, mas agora sozinha com os meninos fica mais complicado né?

- É, mas você já tinha um filho. Deu bobeira de engravidar outra vez, por quê?

- Ah, moça... O João não gostava dessas coisas, sabe... Ele tinha 30 anos, mas a cabeça era meio antiga, sabe? Ele dizia que não tinha por que eu ficar usando essas coisas já que eu era mulher só dele. Mas pelo visto eu não era né... 

Dani chega ao trabalho em tempo. Corre para o banheiro para fazer uma maquiagem rápida. O patrão não gosta que ela fique “desarrumada” e vive dizendo o quanto ela é bonita, diferente das outras como ela. Dani é secretária, mas tá cursando Direito e vive ouvindo do chefe que se ela fizer tudo certo, um dia será promovida a estagiária e irá trabalhar com ele como advogada. Às vezes ela não gosta do jeito que ele fala, mas é difícil conseguir estágio num escritório como aquele, principalmente para ela, que é negra. Na entrevista de emprego ela ouviu que precisava alisar o cabelo, alisou. Agora percebe que ele vive pedindo para ela fazer café e outras tarefas além de sua função, mas Dani suporta. Sempre soube que as coisas seriam mais difíceis para ela. Ela percebe como os professores e os colegas olham diferente para a única negra da classe. 

Patrícia chega ao escritório e vai direto para sua sala. Ela permanece de óculos escuros e ao perceber o olhar de estranhamento da secretária, justifica: 

- Estou com conjuntivite... Melhor eu ficar de óculos, amanhã deve estar melhor. Quando ele chegar, passe os recados que pedi. Prefiro ficar na minha sala e não ser incomodada hoje, por favor.

Sozinha na sala, ela tira o óculos e observa no espelho o hematoma deixado na noite anterior. Durante uma discussão, o marido socou seu rosto. Já são seis anos de casamento. Há três ela convive com os surtos de violência do renomado e premiado advogado paulista. O que mais dói é quando ele diz que ela não foi capaz nem de dar filhos a ele. Patrícia sente culpa, mas só ela sabe que jamais poderia ter um filho de um homem como aquele. Só ela sabe, só ela sente. O telefone toca, é a repórter de uma coluna social dizendo que quer fotografar o casal para uma revista de especial do Dia dos Namorados. Do outro lado da linha ela ouve: “Vocês são perfeitos! Sempre vendemos bem quando vocês saem na capa. São jovens, bem sucedidos e bonitos. Quando tiverem um bebê vão ter que posar pra gente também, hein...” 

Depois de horas na fila, Michele finalmente consegue as vagas para os filhos. Sai de lá animada, deixa as crianças com uma vizinha e pega um ônibus para o trabalho. Já está atrasada e muito preocupada. Quando ela chega no trabalho tenta se justificar, mas ouve do chefe: 

- Olha Micheli, sei que você parece esforçada, mas assim não dá. Chegar atrasada em plena primeira semana de trabalho? Você tem filhos pequenos, é complicado. Criança pequena fica doente, precisa da mãe... Não admitimos faltas aqui. Infelizmente teremos que trocá-la por alguma mulher sem filhos ou até quem sabe, um homem. Não é nada pessoal, sabe? São as regras da empresa.

Ela sai de lá chorando. Passa a tarde dando voltas em vão pela cidade. Pensando em como explicaria para os filhos que ainda não era dessa vez que tudo ia mudar, assim como ela havia prometido. 
O aniversário de quatro anos de Francisco é no mês que vem, mas não vai mais ter festinha, nem presente

Patrícia trabalha até tarde, temendo a volta para casa. No caminho pensa em nunca mais voltar. 
Mas volta. Combinou que no dia seguinte posaria para a tal revista. Se não fosse, sairia na capa do mesmo jeito. Seria um escândalo. 

Depois de uma prova difícil na faculdade, Dani desce aflita do ônibus. Caminha depressa, mas consegue escutar um comentário ameaçador quando passa na frente de um bar: “Já é muito tarde para uma mulher andar na rua”. Abaixou a cabeça e seguiu.


Feliz 9 de março, mulher.



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*Esse é um conto de ficção. Mas pode ter sido a sua história, de sua prima, vizinha ou amiga. Se você for vítima de qualquer tipo de violência contra mulher, busque ajuda. E se você não for, ajude quem precisa.









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