15 de março de 2016

Crítica do disco "A mulher do fim do mundo" - Elza Soares

Parece que eu nasci agora. My name is now! 


Elza - Foto da internet

Por Pedro Menegheti 

Arte de Bruna Hayashi



Do Brasil - que amarra e espanca negros em postes, persegue e assassina travestis e mulheres ou as exibe em comerciais sensuais como objetos - nasceu a voz do milênio. Mais impactante e volumosa que Tina Tuner, Nina Simone, Gal Costa, Tete Espíndola, todas as Grace Jones do pop, Mariah Carrey ou qualquer golfinho que atinja a mais aguda e afinada nota vocal. Elza Soares é puta, bruxa, travesti, a voz do milênio e também a Mulher do Fim do Mundo.

Em outubro de 2015 surpreendeu os fãs, jornais - e quem não lembrava o que era essa tal Elza - quando lançou, pela gravadora Circus, o disco “A mulher do Fim do Mundo”. Com 60 anos de carreira musical esse é seu primeiro álbum de interpretações inéditas cantando a negritude, sexo, gênero, drogas e a morte no apocalipse do planeta fome. A “nega do cabelo duro” está sempre começando e tudo é agora e aqui. Descobriu o prazer de parir cada sí-la-ba que vocifera. E assim nasceu o samba-punk. Não o punk “do it yourself” da década 70 nos países desenvolvidos, mas o “punk” sinônimo de vida dura, rasgada e doída de uma mulher negra que teve que levantar, sacudir a poeira e dar conta em um país selvagem.

Na primeira faixa, à capela, lança “coração do mar”, poema de Oswald de Andrade, como o começo da própria história, vinda de outros continentes em corações e navios negreiros. A voz arranhada e quase rouca se revela como um prefácio ao que está disposta e é capaz de fazer: cantar até o fim! Permitiu-se narrar o depois do fim, o futuro da morte. A mulher do fim do mundo está estirada no chão em meio ao carnaval.

… “A pele preta e a minha paz

Na avenida deixei lá

A minha farra minha opinião

A minha casa minha solidão

Joguei do alto do terceiro andar

Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida

Na avenida dura até o fim”

e morta ainda quer cantar, até o fim de todo fim.



Para Elza, o mundo acabou não foi nem uma ou duas vezes. Teve que velar dois filhos, o primeiro marido, a mãe, Garrincha e toda agressividade vinda dele, três filhos, muitos amigos e ainda resistir aos boicotes da mídia à sua carreira. Com 78 anos, se mostra ainda mais forte para esbravejar tudo aquilo que machuca. E não mede a palavra nem os ânimos para falar da violência contra a mulher.

Na voz de Maria, esbraveja “você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”! Não há na Vila Matilde quem não entenda o que a voz do milênio canta na segunda faixa do disco. O diálogo desenha a voz comum de uma vida cansada que sai pela janela da casa da mulher. Toda violação velada pelo machismo explode em ódio. A água está fervendo. Elzinha é mulher o suficiente para colocar a coragem do rei da cocada em um poço cheio de merda. E o palhaço bem que avisou.

Em “Luz Vermelha”, Elza - que no pajubá pode significar roubar - rememora o bandido da luz vermelha e conta um faroeste sobre o terceiro mundo, um estado de sítio no país. O terceiro mundo vai explodir e quem estiver de tamanco, sapato e cadarço não vai sobrar. A luz vermelha ilumina o mundo de João Acássio, um dos assaltantes mais conhecidos do Brasil, “o bandido mascarado que não respeita mulher e nem a propriedade de ninguém”.

O Bandido da Luz Vermelha dizia, “um país sem miséria é uma país sem folclore, e um país sem folclore é um país sem turistas”. Composição de Kiko Dinucci, a música utiliza e ressignifica o discurso de João para gritar o quanto somos privados de viver pela simples e cotidiana violência de um tiroteio ao meio-dia a fim de manter uma civilidade para os olhos estrangeiros.

“Olha não tem ninguém na rua

Não vi ninguém no açougue

Não tem ninguém lá pra abandonar

Olha não tem ninguém na praça

Só tem um sol sem graça

Não tem ninguém para ver e contar” 


Sozinho ninguém vale nada. Estamos indiferentes em um estado de guerra, fingindo não viver um apocalipse que persegue e mata o diferente. O corpo da puta do milênio sangra como um vulcão em erupção.

Na quarta faixa do CD Elza invoca a bruxaria de todas as mulheres queimadas na fogueira e bota pra fuder. A lava escorre e seca, expandindo territórios e abrindo caminhos. O “peito em chamas solta a fera pra correr” na vasta geografia de possibilidades da carne. Há tanta sensualidade nessa faixa que dá para sentir o corpo em vulcaniose, erodindo e explodindo em desejos; o sexo sendo consumado e as unhas cravando a própria pele. “Olho pro meu corpo e sinto a lava escorrer”. Impressionante virilidade e calor pujante de uma senhora que goza a vida e a morte. O prazer não tira férias do corpo cansado.


Das feras que foderam e foram fodidas, Benedita surge virando a esquina. Entra em cena e é bem mais que uma menina. “Benedita é uma fera ferida”. Uma das faixas mais agressivas do álbum transparece a realidade de uma travesti no planeta fome. A violência que sofre diariamente nas ruas, por ter sido expulsa de casa, e a violação de quem vende a própria carne e trafica para sobreviver. Teve que aprender levar cartucho na teta, abrir navalha na boca para resistir ao cotidiano vermelho. “Ela é crack”! Como Elza, Benedita é uma mulher do fim do mundo, traz na carne uma bala perdida. De seu último fim ainda não foi encontrado.


No fim do mundo, resta a música suja e as batidas distorcidas da guitarra eletrônica, batuques digitalizados e uma mulher ciborgue com a lata da garganta arranhada. A mulher do fim do mundo não faz bossa negra ou samba jazz. A sonoridade da mulher de “now” é a estética da sujeira do mundo, todos os incômodos sonoros que brotam das cidades. A história de todos os golpes, quedas e despedidas. Das entranhas de si tira uma sonoridade intrincada e caótica que se harmoniza.




Da maturidade feminina que resistiu aos anos de chumbo e dançou solta toda a África que aprendeu no mapa dos pés de sua mãe, Elza Soares leva consigo um lamento ancestral e presente de apocalipses diários. O disco é a sensação de duras despedidas e a necessidade de superar essas vertigens. O que de alguma forma possibilita que em algum lugar do universo essa mulher orquestre tão bem o total caos sonoro com o completo silêncio. E assim, somente assim, poderia despedir-se como filha e mãe que vê tanta gente partir e que um dia também acaba. Como uma forte ventania e um trem pedindo passagem, engrenagens arranhando e na bagagem leva de um modo que não sabe dizer, um presente de sua mãe: o próprio ser.

E quando somente o silêncio da obra tem a dizer, como a chave que finaliza passagens, sussurra de longe a pantera punk: “daria a minha vida a quem me desse o tempo.... mas seu me levantar ninguém irá saber... e o que me fez morrer vai me fazer voltar”. Elza é um furto das impossibilidades, uma fênix que a cada morte torna-se mais viva e eterna.






Pedro por Raquel Satto



Pedro Menegheti é um estudante de Jornalismo que anda por aí sem documento, mas sempre envolto em lenços coloridos. É leve, canta, dança, abraça apertado, sorri bonito e escreve em Recanto das Letras. 

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