14 de abril de 2016

O crime da Samarco em Mariana e uma história (ainda) não contada




Cinco de novembro de 2015 está marcado na História pelo rompimento da “Barragem do Fundão”, localizada na região de Mariana, Minas Gerais. Apesar de noticiado como acidente, a tragédia se caracteriza como crime causado pela irresponsabilidade da mineradora Samarco, cujas donas são a Vale e a BHP Billiton.  O rompimento destruiu completamente o distrito de Bento Rodrigues, afetou municípios do entorno, causou dezenove mortes e ainda há desaparecidos. A lama atingiu o Rio Doce, até Espírito Santo, e chegou ao oceano. Já se passaram quase seis meses e ninguém foi punido. É sobre tudo isso que se trata o projeto "Fundão - A História Não Contada", um documentário investigativo feito de forma independente por um grupo de produtores de audiovisual de Ribeirão Preto, São Paulo. Na primeira etapa de filmagens a equipe é formada por Matheus Vieira, Jorge Spadaro, Anderson Colucci e Mariana Rosa. Já na segunda parte da produção, recebe a colaboração de Tiago Calil e Camila Oliveira. Juntos eles percorreram todo o trajeto de destruição deixado pela Samarco e foram até Brasília para dar roteiro a uma história não contada pela grande mídia. O filme está em fase de edição, mas depende de uma campanha de financiamento coletivo para ser lançado. O Desvio Livre entrevistou a fotógrafa e produtora Mariana Rosa para saber mais sobre o processo de investigação do documentário.

Foto de Matheus Vieira


Como surgiu a ideia de fazer o documentário para investigar o rompimento da barragem?

Quando aconteceu tivemos um bombardeio de informações e a mídia dividia atenção com o ataque na França. Eu tive a ideia e convidei o Matheus para ir até Mariana fazer, e ele chamou o Anderson e o Jorge. Todos nós somos freelancers e cada um faz um pouco de tudo. Nos organizamos em três dias e fomos. Sem roteiro e sem saber o que iríamos encontrar. Colhemos informações durante a viagem e quando chegamos lá descobrimos muitas coisas que não eram verdade. Para baratear os custos nos hospedamos em repúblicas estudantis e à medida que íamos conhecendo pessoas, recebíamos ajuda. 


Equipe gravando
Como se deu o processo de pensar um roteiro para a viagem e para o vídeo ao mesmo tempo?

Na primeira ida fazia dias que a tragédia tinha acontecido e as informações foram surgindo durante nossa estadia de dez dias. Primeiramente conversamos com os atingidos e depois fomos até Paracatu falar com cerca de cinco famílias que ainda estavam lá cuidando dos animais no local. Em seguida fomos para Bento Rodrigues filmar a destruição e depois entrevistamos pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto. Com todos os depoimentos e também pela falta de informações factuais precisas, decidimos acompanhar o trajeto de contaminação do Rio Doce e aí passamos por muitos lugares até chegar em Regência (praia no Espírito Santo), onde deságua o rio. A lama afetou tudo. 


Como foi a experiência de abordar pessoas durante uma situação de perda e desespero? 

Eu queria ir contra uma narrativa sensacionalista e conversar com o menor número possível de pessoas atingidas. Tínhamos que ter empatia com aquele momento de dor e contar a história além das perdas pessoais e familiares. Queríamos investigar as amarras políticas do crime e se a população estava consciente de quem era o culpado e como pensavam em agir para lutar por tudo que perderam. 
Rio contaminado

Que tipo de reação da população vocês encontram quando chegaram lá? 

Primeiramente nos deparamos com uma passeata pró Samarco. Acho que as pessoas estavam com medo de perderem os empregos e achando que algum tipo de poder poderia expulsar a empresa de lá. Mas isso é uma ilusão porque o minério está lá e teoricamente é do povo, nunca vai faltar uma empresa para ter interesse em explorar. Acho que é possível fazer isso de maneira mais responsável, mas a população não cobrava isso porque até o prefeito da cidade tem um discurso irresponsável e omisso. Nós queremos mostrar que o setor público e privado são cúmplices de uma política que funciona baseada na exploração do povo e do meio ambiente em nome de interesses individuais.



Como foi o processo de construção da narrativa do documentário?

Queríamos abordar uma outra história além do acontecimento. Pesquisamos a fundo a história da mineração no Brasil, a privatização da Vale e o impacto que ela causa em cidades afetadas pela exploração do minério. Estivemos numa assembleia do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) com a Samarco, e vimos os funcionários reproduzindo um discurso pronto e mentido ao garantir que isso não ocorreria mais. Nesse ponto já sabíamos que a abordagem teria que ser política e investigativa. 
Destruição em Paracatu de Baixo (Mg) Foto de Mari Rosa


O que você acha que mais afetou as pessoas desabrigadas?

A população que morava em Paracatu e Bento Rodrigues é pobre. Ao conversar com eles vi que existia uma economia local e uma vida em comunidade que eles gostavam e que fazia sentido. Depois do rompimento da barragem eles foram levados para casas de aluguel em Mariana, mas estavam deslocados. Percebemos que a maior angústia era não ter a terra para trabalhar e a rotina que tinham antes. Quase seis meses depois, a maioria ainda está em casas emprestadas sem saber como será a vida dali pra frente.


Em que o documentário se diferencia das grandes coberturas midiáticas?

A forma que a grande mídia abordou o crime foi sensacionalista, mais focada no sofrimento das pessoas. Houve exceções, o CQC, por exemplo, fez uma matéria de grande impacto, mas deixou o assunto morrer. Nós voltamos lá um mês depois para ver o que aconteceu e conversar com as pessoas em um momento mais tranquilo emocionalmente. Levantamos questões sobre o Código da Mineração e fomos até Brasília tentar falar com deputados que fazem parte das comissões abertas para investigar o caso. Na segunda etapa de gravação o Matheus e o Tiago estiveram em aldeias indígenas afetadas pela contaminação da água do Rio Doce (Espírito Santo divisa com Bahia). Os índios tinham que comprar os peixes na cidade para comer. Acredito que todas essas experiências fazem nosso conteúdo diferente. Abordamos o contexto de antes, durante e depois.

Equipe entrevista Neto Barros,o prefeito de Baixo Gandu (ES)


Por que optaram pelo financiamento coletivo?

Fizemos uma produção com baixo custo e tiramos do nosso próprio bolso os valores com locomoção e comida. Passamos perrengues muito grandes. Ficamos atolados na lama, nos perdemos na estrada várias vezes e ficamos sem dinheiro. Fomos ajudados e em nenhum momento perdemos o gás, foi um processo muito bom de produção. Não incluímos nesse valor uma remuneração individual, pois pedimos pouco dinheiro para conseguir a arrecadação dentro do tempo e pagar o que gastamos até aqui. Nesse projeto de financiamento coletivo as pessoas podem contribuir com valores que variam de dez até mais de cem reais. Todos que contribuírem serão recompensados de alguma forma, além de ser um fator fundamental para o lançamento do filme. A maior dificuldade de fazer mídia independente é a falta de dinheiro.


Quais os projetos para o documentário depois do lançamento?

O objetivo é fazer o filme rodar, mostrar outra narrativa e os desdobramentos do caso. Já fechamos uma parceria com o SESC para fazer a estreia do filme lá de maneira aberta e gratuita. Queremos ir a todos os lugares que abrirem oportunidade exibirmos de maneira aberta. Um dos nossos produtores tem o projeto de um cinema itinerante em escolas e vamos disponibilizar o filme assim também. Queremos e vamos levar até Mariana e região. Não vamos deixar só na internet, pois muitas pessoas ainda não têm acesso à internet para ver vídeos. O pessoal protagonista do filme não tem acesso, então temos que levar até lá. 


Em edição - Mari e Matheus

Como fazer com que o ativismo audiovisual chegue na periferia?

A internet é um bom caminho, mas não atinge a massa. A televisão continua atingindo mais pessoas. Acho que não basta ir até a periferia mostrar um vídeo e ir embora. É preciso construir junto através de projetos sociais a noção de que todos podem ser produtores de sua própria cultura. E isso já acontece, a periferia não precisa esperar para produzir seu próprio conteúdo, ela só precisa de ferramentas. 


Contribua com a campanha pelo lançamento do doc clicando aqui! Acompanhe também o Desvio Livre no facebook

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Alerta: Conteúdo Extra!

Mari em Brasília, DF. Por Matheus Vieira

Ela


Mari Rosa é uma daquelas pessoas que chegam até a gente através de amigos. Quando conheci um de seus projetos como fotógrafa confirmei o que já tinha ouvido falar sobre o olhar sensível e poderoso dela. Nossa conversa sobre o documentário “Fundão - uma História não contada” rendeu muito mais do que eu imaginava, então achei que merecia o compartilhamento. Aqui ela fala sobre a mulher no audiovisual, machismo na profissão, a estética do corpo feminino, nudez e etc.



Mari por Kaka Junqueira

Mulher no Audiovisual

Acho que ainda faltam mulheres realizando. Se você entrar numa sala de faculdade vai ver muita mulher, mas essas mulheres não aparecem como protagonistas nas produções. Acho que existe uma influência grande do que é construído socialmente sobre “funções de homem ou de mulher”. Atribuem-nos funções que exigem certa delicadeza ou paciência, como se só pudéssemos fazer isso. Se uma mulher é fotógrafa acham que o lugar dela é fotografando só bebês e festas de família. Mas nós podemos ser operadoras de câmera, editoras, diretoras, técnicas e etc. 

Ser mãe 

Sou mãe de uma menina de seis anos e em situações como a do documentário, que eu tive que viajar por dias, por exemplo, se eu não tivesse um ex companheiro que divide as responsabilidades eu não poderia trabalhar. Além disso, tem o preconceito em várias situações em que uma mulher trabalha só entre homens. 




Mulher pode tudo

Se eu fosse trabalhar numa produtora não me deixariam fazer o que posso fazer enquanto freelancer/independente. Eu já tentei, mas me colocavam para atender telefones e fazer apenas coisas da produção. O olhar machista desse meio só enxerga uma mulher no set de filmagem para fazer produção ou maquiagem, enquanto os homens operam câmeras, dirigem e etc. Eu queria estar no set falando o que deveria ser feito, queria operar câmera, dirigir, fazer mais do que atribuem ao “feminino”. Trabalhar de forma independente me dá essa liberdade, mas também é difícil pela instabilidade financeira e de horários.

Projeto Woman Real Life [Conheça aqui]

Eu comecei questionando o trabalho de um fotógrafo que clicava mulheres nuas. Achava que era um olhar objetificador, de fetiche sobre o corpo da mulher. Aí quando terminei um relacionamento, me libertei de muitas coisas em relação ao olhar que eu tinha sobre meu próprio corpo, e resolvi fotografar mulheres em um projeto que mostrasse outra perspectiva do corpo feminino. 

[Re] Enxergar

Quando comecei a fotografar mulheres ouvi de um homem que esse não era meu espaço e sim de fotógrafos homens. Eu respondi que eu deveria sim fotografar mulheres nuas porque sou mulher e sei o quanto sofremos com a pressão social pelo padrão de beleza. Sofremos no dia a dia para disfarçar coisas que não são aceitas pelo padrão, como por exemplo, pêlos. É muito difícil um homem fotografar uma mulher nua sem um olhar de fetiche. Quando eu fotografo uma mulher eu quero que ela se veja e se ame porque eu sinto isso, eu sei que temos que nos amar. Um homem não tem essa experiência com o corpo, para eles sempre foi ensinado que o olhar sobre o corpo da mulher deve ser de desejo pelo padrão, então é difícil não ser um olhar fetichista. 

Por que as mulheres te procuram para fazer um ensaio nu?

É muito louco. Cada uma tem um motivo. Me procuram porque querem demarcar um novo momento na vida ou se enxergarem de maneira diferente. Elas querem olhar o próprio corpo de um jeito bonito e natural. 

Encontrar a beleza

O objetivo não é fotografar uma estria e dizer o quanto ela é bonita, é mostrar pontos do seu corpo que te fazem se sentir bem. Mostrar o corpo como é e a beleza que existe nisso. Todas temos partes que achamos feias ou bonitas e esse processo de se reconhecer bonita apesar de imperfeições é libertador. 

Os fins e os meios

Nós conversamos antes, durante e depois das fotos. É sempre emocionante ouvir essas mulheres e os desejos e anseios delas. Eu vou acompanhando a transformação desde o momento que querem fazer até quando se veem e relatam a experiência. O mais interessante é que é um ensaio para elas, não existe obrigação de agradar uma expectativa masculina. É um presente construído de mulher para mulher. 

Auto Retrato de Mari Rosa
















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