7 de junho de 2016

Carta para uma vítima


Demorei para escrever. Demorei para acreditar, entender, perceber, assimilar e sentir tudo que a gente sente quando ecoa em todos os cantos a notícia de que uma menina foi estuprada tantas vezes por tantos homens. É absurdamente violento, odioso, trágico e sintomático. Ao longo desses dias eu me revoltei, briguei, chorei, senti medo e desconfiança. 

Nada do que eu tentasse escrever aqui poderia dar conta de tudo que é necessário dizer. Eu li notícias e manchetes, li análises sensatas e tive que tentar engolir os discursos que buscavam justificar. Eles tentaram justificar e eu tentei engolir, mas vomitei de volta. De engasgo e nojo. Pensei muito no meu papel e na mulher que sou. Pensei que eu poderia e deveria escrever porque é essa uma das minhas ferramentas de trabalho e das minhas formas de me confortar e tentar oferecer conforto. Por algumas vezes eu fiz rascunhos e apaguei, mas decidi fazer essa carta porque cheguei à conclusão de que não teria sentido me esforçar em dizer qualquer coisa que não fosse diretamente para você.


Mais do que te dedicar essas palavras aqui, valeria olhar nos seus olhos e te dar um abraço. Foi isso que eu quis fazer desde o primeiro momento em que percebi que apesar dos nossas tentativas em te provar que você não está sozinha, você convive sozinha com a sua dor. As mensagens de apoio são diárias e existem milhares de mulheres mobilizadas por você, por nós. Acho que essas mensagens servem para te mostrar que apesar de tudo, você é sobrevivente e essa vida que pulsa e dói depois da violência ainda é sua. Você tem o direito de vivê-la e não pode se envergonhar por isso. Você é guerreira, menina.

Arte de Jordana Diez


Eu queria te dizer que te entendi quando soube que sua primeira reação foi ir para casa, tomar um banho e se esconder no seu silêncio. Eu já fui menina, já tive dezesseis anos e posso imaginar tudo que você pensou e sentiu. Não só por ser menina, mas principalmente, por ser a vítima. Medo, vergonha, nojo, culpa, impotência e talvez até certa descrença de que tudo aquilo realmente aconteceu contigo. Não dê importância aos que ainda falam o que você deveria ou não ter feito e se adiantaria algo ou não. O estupro é um crime e nesse crime só existem dois lados: criminoso e vítima. Você é a vítima, a responsabilidade desse crime não é sua. Nunca foi e nunca será. 

Eu queria estar com você naquela sala da delegacia quando te constrangeram e te coagiram para que você se sentisse mal e culpada. Eu queria estar lá para poder gritar e fazer escândalo enquanto eles tentavam te emudecer. É difícil confiar na justiça dos homens quando ela é feita só por homens e para homens. A gente tem gritado na rua, espero que você esteja acompanhando a força que esse movimento tem tomado. Por você, por nós.

Eu preciso te pedir desculpa por todos os jornalistas que te perguntaram sobre motivos ou circunstâncias para que você estivesse lá aquele dia. Por todas as vezes que te fizeram repetir a história e relembrar aquilo. Por todas as perguntas que te deixaram em dúvida. Por todos os títulos e manchetes em que escreveram “suposto” estupro, e por toda a confusão que isso deve ter causado em sua cabeça. Não se engane. A única atitude que poderia ter mudado tudo seria se os estupradores decidissem não estuprar.

Eu assisti sua entrevista ao Fantástico e fiquei pensando muito por te ouvir responder que se você pudesse desejar algo aos seus estupradores, você desejaria a eles uma filha mulher. Acho que você disse isso por entender que se talvez esses homens tivessem muito amor por uma menina, eles entenderiam as consequências do que fizeram. Eles não estuprariam. Eu queria acreditar que bastava aos homens uma filha mulher para não estuprar, mas a tal cultura do estupro existe e ela é bem mais complexa do que a gente pode imaginar sendo vítima aos dezesseis anos. 

A sua resposta também me fez pensar que se uma filha mulher pode ser uma forma de punição, ser mulher é castigo. E às vezes parece mesmo um castigo, castigo por algo que não fizemos. O seu caso e tantos outros que repercutem ou não na mídia causam esse sentimento na gente. Ser mulher é resistir todos os dias a uma cultura e um sistema que nos coloca em condições de opressão desde cedo e por toda a vida. Algumas estão em situações muito mais vulneráveis que as outras, mas todas nós estamos expostas de alguma forma ao medo do estupro.

O que aconteceu com você se tornou exceção pelos detalhes, mas toda mulher sabe o que é sentir medo de que isso ocorra, mesmo que algumas ainda não tenham enxergado que precisamos nos unir e nos protegermos em vez de nos julgarmos e nos atacarmos. Nisso tudo, você não está sozinha e nunca estará. Talvez seja difícil agora entender e acreditar que é possível seguir, mas eu acredito que você vai descobrir sua força para seguir. Eu acredito na força das mulheres em manter o grito na rua e a corrente de proteção ao seu redor para que você tenha condições de seguir e ser a médica ou qualquer outra coisa que sonhe. 

Existe um sentimento de impotência diante de tudo que tem acontecido com você e tantas outras. Eu queria te amparar, te contar como venho enxergando o mundo desde os meus dezesseis até aqui. E eu queria muito, mas muito mesmo, te escutar. Ouvir sua história e quem você é independente desse pedaço da sua vida. E se você só pudesse me oferecer silêncio, eu queria ter a sabedoria de te ouvir e te entender assim também. 

É desesperador saber que a estatística é gigante e que a violência fruto da cultura do estupro faz vítimas todos os dias o tempo todo. O que eu pude fazer hoje por nós foi escrever. Eu escrevi para mostrar que a nossa voz existe e ela não será mais abafada. Mesmo quando uma mulher não puder falar, eu lhe prometo que sempre vai haver ao menos uma de nós gritando e fazendo escândalo pelo silêncio da outra. E quando não vou houver uma, haverá duas ou milhares. Você já sabe que ser mulher às vezes parece castigo, mas aprendeu também que ser mulher é resistir, então façamos da vida resistência. Por você, por nós. Não se esquece do que eu te disse, você é guerreira menina.


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