7 de novembro de 2014

Lidiane, o amor ao próximo e o amor próprio

Ela é uma mulher de 30 que acha que já nasceu velha, não pelo tipo de disposição que carrega, mas pelo modo como sempre encarou suas escolhas. Aos 12 anos sonhava com um emprego na ONU, a Organização das Nações Unidas. Já queria mudar o mundo. Movida por essa vontade, quatro anos mais tarde tomou uma decisão. Entrou para a Congregação Irmãs de Nossa Senhora da Consolação, uma espécie de preparação para, um dia, tornar-se freira. O sonho que não cabia no peito foi o primeiro amor dela, que por ele fez o que muitas meninas poderiam considerar loucura.

Pequena Lidi- Arquivo pessoal
O que atraiu Lidiane não era exatamente sua relação com a fé, mas a alegria das jovens irmãs que estavam de passagem por sua cidade, Itaú de Minas, interior do estado, com o seguinte cartaz: “Jovem, você também pode mudar o mundo”. Era a adolescência, fase de crise existencial e, para ela, em maior proporção do que as para as amigas de colégio. Lidiane sonhava grande e já sentia que a pequena Itaú era realmente pequena para ela. Ali estavam todas as memórias da infância. Do cheiro de café, das tardes e noites brincando na rua pacata, até os longos diálogos com o falecido avô materno que, segundo ela, foi o único político honesto que conheceu. Foi dele, sr. Severo Matias, que herdou o gosto pela leitura, a visão crítica do mundo e a necessidade de fazer sua parte por uma sociedade diferente. 

Lidiane é a mais velha de três filhos, se relaciona bem com os irmãos e com os pais. Conta que sempre teve o apoio deles para tudo e foi assim quando saiu de casa para morar em Areado, a cerca de 140 km da família, na casa da Congregação com mais nove meninas e algumas irmãs responsáveis por elas. Lá ficou durante dois anos, estudando e passando por uma preparação inicial para se habituar à rotina que viria pela frente. Apesar de ter sido uma fase feliz, marcada por amizades que carrega até hoje, foi também um período de crises e questionamentos internos, muitas vezes silenciados pela pressão do compromisso para com sua escolha até ali.

Nessa parte da conversa – ao se referir à vida religiosa –, ela pronuncia a palavra ditadura. A visão que Lidiane tem hoje da rotina das religiosas, todas elas submetidas a regras severas e rígida disciplina, me mostra que aquela vida jamais combinaria com a mulher que conheci, e muito menos com a menina que buscava a liberdade nos livros ou em qualquer lugar do mundo onde fosse possível realizar seu sonho. 

Superada a primeira etapa, ela foi transferida para Ceilândia, cidade satélite de Brasília. Lá, trabalhou numa escola que pertencia às freiras e colaborou em projetos sociais da organização. Conheceu um recorte da pobreza que a fez ter certeza de que sua vocação era ajudar o próximo. Mas foi um ano difícil. Longe da família, com a mãe passando por uma depressão profunda e uma irmã pequena, Lidiane, aos 18 anos, precisou ainda de mais coragem para continuar. E teve. Abriu mão do desejo de fazer faculdade de química e, entre choros abafados, escritos secretos e dúvidas permanentes, chegou até o noviciado.
Reprodução da internet

Foi morar em Belo Horizonte com mais treze moças de vários lugares do país, e também algumas de Moçambique, África. Essa fase exigia total dedicação à rotina de aprendizados e à formação religiosa. Eram dias desgastantes, física e mentalmente. Ali as moças estavam privadas de qualquer atividade ou entretenimento normal na vida de jovens comuns. Era a reta final para a preparação dos votos, e ela não se sentia preparada. Ora tinha certeza de que queria ser freira, ora percebia que aquele mundo poderia ser muito pequeno diante das possibilidades que tantos outros mundos poderiam oferecer. Quase tudo incomodava. “Por que tenho que acreditar em tudo, sem questionar? Por que tenho que abrir mão de ter filhos, caso um dia eu queira? Por que tenho que usar essa roupa, que parece uma capa de botijão de gás? Eu queria mais, queria... Sei lá, poder usar calça jeans e tênis!” Mais uma vez, entretanto, guardou seus questionamentos para si, pediu os votos e tornou-se freira. No dia da cerimônia, estava feliz, mas não convicta. Sabia que aquilo não era sua resposta interior definitiva, mas continuaria buscando seu caminho. É... Começo a entender que ela é realmente a mulher teimosa que me disse ser. 

Foi transferida para São Paulo e, morando na Casa Provincial, num bairro de classe alta, percebeu uma grande incoerência em sua vida. Ela abrira mão de várias coisas para dedicar a vida aos pobres e ao combate à pobreza, e, de fato, fazia-o em seus trabalhos voluntários. Porém, morava numa casa que parecia um palácio. Seguiu. Ainda não era o fim. 

Depois de um ano e meio na capital paulista, Lidiane foi transferida para Palmas, interior do Paraná. Lá, morava e trabalhava num asilo, onde diz ter tido as melhores experiências humanas de sua vida. Mas foram também os tempos mais difíceis de sua trajetória. Perdeu dois avôs e um primo, e descobriu uma hidrocefalia no cérebro. Passou por uma cirurgia, recuperou-se e, depois de oito anos, olhou para o passado, e principalmente para o futuro. Deixou a Congregação. Pela primeira vez, não estava em crise. Ela explica tudo em detalhes, sabe datas, não desvia de nenhuma pergunta e tem uma fala pausada e tranquila. Nem parece que já coube tanta história nesses 30 anos. E mais: Lidiane ainda se diz uma pessoa stressada e ansiosa. Para quem vê de fora, não parece. Mas é como ela se enxerga, talvez de fora para dentro.
Lidiane -  Trabalho sobre acessibilidade em MG

Depois de tanto tempo descolada do mundo fora da igreja, ela teve medos simples, mas pertinentes, considerando sua nova condição. Por exemplo, o que faria para pagar suas contas? Ou como viveria a sexualidade que sempre esteve ali, aflorada, mas por tanto tempo reprimida? “Nunca fui pura, a igreja é que queria tirar isso da gente, mas todos temos desejos, é uma hipocrisia. Minha cabeça era terrível!” Naquele momento, Lidiane soube que tudo seria um grande recomeço. Então, rapidamente, voltou a estudar e a trabalhar pela internet. Foi em 2009, a convite de um casal de tios, que se mudou para Mariana, Minas Gerais.

Os últimos quatro anos – ou pouco mais – foram de intensas descobertas e redescobertas. Ela já tinha a idade de 24 quando passou no vestibular para Jornalismo, e mergulhou de cabeça no mundo da universidade. Lá, com colegas de turma que, em sua maioria, tinham, então, 17 anos, teve a oportunidade de experimentar a fase da juventude, da qual abrira mão antes. O jornalismo é a forma de manter vivo o sonho de menina. Aquele, o primeiro amor, o sonho de mudar o mundo. Ela se formou há pouco tempo, ainda nem tem o diploma oficial. Mas os sonhos continuam gigantes. A maturidade, no entanto, deu-lhe a certeza de que, para isso, não é necessário um emprego na ONU, mas, sim, pequenas atitudes cotidianas, todas aquelas que ela for capaz de fazer com um sorriso no rosto e prazer.

Turma de formatura de Jornalismo - Arquivo pessoal
Lidiane está namorando e não faz muitos planos para o amor. Vive. Para a profissão, voos cada vez mais altos. A serenidade na fala e as opiniões bem pontuadas mostram a maturidade que a vida lhe trouxe cedo, e a disposição da menina sonhadora. Até o fechamento desse texto, sua maior incerteza era se teria coragem ou não para a primeira tatuagem. Acho que terá, afinal. A frase escolhida combina muito com ela: “Viver é muito perigoso. Carece de ter coragem” (Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas)






Alguns meses se passaram desde que escrevi esse texto. Lidiane teve coragem para fazer a tatuagem e já planeja a segunda. Vive seus amores e atualmente cursa Mestrado em Patrimônio Cultural pelo Iphan. 

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