29 de fevereiro de 2016

Violência contra mulher na Ufop

Foto da internet


Um caso 


Na madrugada do dia 20 de fevereiro, duas mulheres foram agredidas fisicamente por um homem dentro de uma república federal da Universidade Federal de Ouro Preto, em Ouro Preto, Minas Gerais. As agressões ocorreram durante uma festa na república Pif Paf, e as duas vítimas apanharam após tentarem proteger uma amiga do assédio do ex aluno Weslley Santos Soares. Uma delas levou um soco no queixo e a outra um soco no olho.

A Universidade Federal de Ouro Preto, a Ufop, foi fundada em 1969 e é fruto da união de duas centenárias instituições de ensino superior: a Escola de Farmácia, fundada em 1839, e a Escola de Minas, criada em 1876, ambas em Ouro Preto, Minas Gerais. Hoje ela é uma das maiores e mais conceituadas universidades de Minas Gerais e do Brasil. É importante ressaltar os números e datas porque a Ufop é um lugar onde se ouve muito a palavra “tradição”, e a prática e reprodução de algumas tradições é parte responsável pela naturalização das violências que ocorrem lá dentro. Mas falemos disso adiante, pois eu escrevo por uma fagulha de esperança de que algumas tradições estão sendo quebradas. 

O caso das estudantes agredidas foi denunciado através de uma carta aberta no facebook e ganhou repercussão. Houve muita demonstração de apoio, compartilhamentos, uma matéria ruim feita por um grande jornal, depois a correção dessa matéria por uma mais digna, um posicionamento da república Pif Paf e por fim, uma nota de repúdio da instituição que parece ter saído de uma forma do Google.

Vítimas agredidas - Reprodução Facebook

O caso está longe de ser encerrado, mas acredito que faça parte de um momento histórico para a universidade e o contexto que ela está inserida. Com tantos anos de tradição, reconhecimento e vínculo afetivo com grande parte de seus ex alunos, só agora, em 2016, temos uma denúncia aberta de um caso de violência contra mulher sofrido por estudantes dentro de uma república. A exposição de tudo e de todas está gerando debate, indignação e desconforto. Essa data é histórica não porque esse é o primeiro caso em tantos anos, mas sim porque é a primeira vez que mulheres se sentem apoiadas para denunciar um agressor. É a primeira vez que os rostos marcados pela violência fruto da nossa cultura machista ganham voz. Aliás, vozes. Não estão sozinhas. 

Protesto feminista na Ufop em 2013 - Thamira Bastos

Devemos comemorar a revolucionária coragem das vítimas, mas sem perder de vista que para uma mulher denunciar um agressor não é preciso só coragem. Em um caso como esse, a coragem nasce também do apoio. E esse apoio não vem só da instituição Ufop e muito menos da polícia da cidade, mas principalmente de outras mulheres que sentem-se indignadas e ameaçadas diante da violência. 








Em meus quatro anos de universidade eu perdi a conta de quantos relatos de estupro e violência já ouvi. Perdi a conta de quantos relatos minhas amigas já ouviram e até contaram. Multiplique a minha experiência pelos anos de existência da Ufop e imagine quantas mulheres já não tiveram seu grito abafado. As vítimas desse caso foram extremamente corajosas pela denúncia e exposição, e no momento são protagonistas de uma luta que vai muito além da agressão que sofreram. Avante, mulheres!

Mais importante do que a exposição delas, é que o rosto do agressor também circula por aí. O poder das mulheres e da internet, dessa vez é maior que o corporativismo de algumas repúblicas e da “brotheragem” entre os homens. O rosto de Weslley circula da mesma forma que aparecia em seu quadrinho pendurado na parede da república Pif Paf: bem vestido, sério, com nome e sobrenome de engenheiro respeitável. Não tem “cara” de homem que bate em mulher, né? 

Ainda não sabemos se Weslley será devidamente punido pela justiça ou se ao menos sentirá vergonha de andar na rua e ser reconhecido. Não sabemos se ele realmente perdeu seu prestígio dentro do sistema e hierarquia das repúblicas federais. Não sabemos se daqui dias, meses ou anos ele vai levantar a voz ou o braço para agredir uma mulher novamente. Infelizmente, apesar de termos a Lei Maria da Penha como medida protetiva às mulheres, a sensação de impunidade persiste e é um dos fatores que permeiam o problema. O debate a respeito da violência de gênero é historicamente novo no país e ainda não é totalmente encarado como reflexo de uma cultura machista que precisa ser desconstruída. É necessário perceber outros motivos pelos quais a violência contra mulher persiste em todos os ambientes e toma diferentes formas da favela à universidade. 

Foto - Marllon Bento


O engenheiro bateu nas estudantes não só porque achou que ficaria impune por isso, bateu porque ouviu um não e viu uma reação de mulheres unidas diante de seu machismo. Bateu porque ao longo de sua vida foi criado e socializado para se sentir cada vez mais no direito de tratar mulheres como coisas e inferiores. Weslley é um entre muitos universitários que entram na universidade sendo meninos egoístas e intolerantes de 18 anos e saem dela sendo jovens ainda mais egoístas e intolerantes, mas agora amparados pelo poder. Pelo poder de ser homem, de ser rico, de ser hétero, de ser respeitado por ter status de “ex aluno” ou até mesmo de possuir um diploma de engenheiro. Nós vivemos numa sociedade e cultura que valoriza muito isso e coloca esses homens no topo de uma pirâmide de poder simbólico e material. Lá embaixo ficam as mulheres e mais abaixo, as mulheres negras e pobres. Assim mesmo, tratadas e destratadas de acordo com gênero, cor, classe e orientação sexual. 

A violência contra mulher está também na universidade (mesmo sendo esse um ambiente extremamente cultuado e respeitado no Brasil) porque a universidade é só um reflexo apático e requintado da nossa cultura. A diferença entre um analfabeto agressor e um universitário agressor é só a forma como vão parar nas manchetes e também sair delas. Ambos são frutos de uma cultura sexista, machista e racista que massacra mulheres o tempo todo e todos os dias. Para mim soa repetitivo dizer isso, mas estamos em 2016 e muita gente ainda não entendeu. Homens como Weslley tiveram uma trajetória preparada para serem e sentirem-se verdadeiros "reizinhos" diplomados. Crescem se achando especiais e sem conviver com a diferença, e quando chegam à universidade pública encontram apenas mais um espaço onde ser o opressor é digno de receber tapinhas nas costas. 


Batendo na mesma tecla: O sistema republicano


A Ufop não é a única e o cenário é o mesmo em todas as universidades públicas do país. Mas lá temos a forte particularidade da “tradição”. São gerações e mais gerações reproduzindo discursos e uma forma de organização feita há 100 anos. Ao longo desses anos, algumas coisas evoluíram por causa da pressão por disputas internas na universidade e de casos extremos que alcançaram a mídia e fizeram com que algumas práticas de convívio e violência mudassem. Mas a base do sistema republicano permanece fundamentada em batalhas por vaga e hierarquias em dezenas de casas. 

Meu questionamento não é contra viver em repúblicas. Morei em repúblicas, sou muito grata e fui feliz. Nas repúblicas em que vivi sempre houve organização e respeito e nunca precisamos de hierarquia. Fui a todas as festas que quis, fiz amigos, volto e me hospedo lá quando quero e nunca precisei passar por nenhuma humilhação e nem humilhar alguém. Terminei minha graduação e só amadureci porque tive experiências e contato com a diversidade. 

As críticas que faço são incômodos antigos e resultado de toda minha vivencia enquanto mulher estudante. A violência ocorre em todo o ambiente universitário e em todos os campi e tipos de república. Mas é preciso levantar algumas questões que nos levem a refletir sobre recortes desse quadro dentro da Ufop e porquê algumas naturalizações da violência estão associadas ao sistema republicano. 


Comecei esse texto dizendo que me sinto esperançosa porque apesar de tudo, a denúncia da agressão cometida por Weslley Santos Soares partiu da organização de mulheres de uma república federal. Acredito que devemos celebrar e reconhecer o avanço, mas persistir no doloroso exercício de nos fazermos algumas perguntas: Até quando vão pendurar quadrinho de estuprador na parede e cantar hino chamando mulher de vaca? Até quando vão abafar o caso para não manchar a imagem da república? Até que ponto vale manter a tradição de que mulheres, pessoas negras, Lgbtts e estudantes pobres têm menos direito de ocupar esse espaço?




Administração Omissa


São recorrentes os casos de violência contra mulher dentro da universidade (leia aqui e também aqui) e a associação dos casos com as tradições do sistema republicano. Não dá mais para ignorar que qualquer sistema de convívio baseado em hierarquias é antidemocrático e opressor. Sei que é possível intervir nessa forma de organização e quebrar todas as tradições opressoras que são cultuadas na universidade. Mas a quem isso interessa?

De tempos em tempos a Ufop se envolve em “polêmicas” quando relatos e mortes ganham repercussão midiática. Já não dá mais para tapar o sol com a peneira, precisamos encarar com seriedade que todos nós (comunidade, estudantes e instituição) somos responsáveis por formar e transformar a universidade e as pessoas que a ocupam. Para que isso ocorra, não dá para mover uma palha e achar que o dever de casa está feito porque apoiou estudantes depois que as agressões já ocorreram. Tem que ter vontade de mover montanhas. Tem que, primeiramente, fazer um levantamento do quadro de violência dentro da universidade e aí, depois de constatar a realidade tem que: apoiar os coletivos de luta por minorias, criar sistemas protegidos de denúncia para as vítimas, usar a transdiciplinaridade para enfiar goela a baixo o debate de gênero dentro das salas de aulas, formar professores e punir e constranger alunos agressores.Tem que querer se posicionar. 

Mulheres, LGBTTs, negros e pobres passaram por um processo de negação na História do Brasil. Aos poucos, essa realidade está mudando e as minorias estão passando pelas catracas da universidade pública e vão passar cada vez mais. Junto com elas e eles vai vir um grito. Esse grito será pelo assédio, o estupro, o soco, a fala racista do professor e por todas as violências sofridas e perpetuadas dentro do ambiente universitário. A resposta da administração já não vai mais caber em uma nota e as vítimas não vão mais se esconder. A quem está no olho do furacão, restam escolhas. Em cima do muro ou bem posicionado em um dos lados. 


Acompanhe e curta Desvio Livre no facebook





Ouça "Maria de Vila Matilde", canção de Elza Soares sobre a violência contra mulher.





2 comentários:

  1. Ótimo texto, mas novamente com a mesma falha você banalizar a hierarquia como se fosse algo pertencente apenas a república, Hierarquia está presente em toda a sociedade, na universidade, no meio de trabalho, no nosso governo e sim dentro da sua família, o problema em si não é a hierarquia e sim a falta de respeito com o próximo, eu sou cria do sistema , meus pais são ex-alunos, tenho irmã, tios, tias e primos dentro do sistema republicano, o que me ensinaram é que com a hierarquia vem maior responsabilidade, nada além disso, em algum momento na sociedade isso foi deturpado por poder. Acabar com a hierarquia é algo utópico e sem sentido, o que eu batalho é para resgatar o verdadeiro conceito de hierarquia, você mesmo usa disso, nesse meio , onde é o seu blog você é a decana, e independente da minha opinião, que aliás sou uma das moças da qual você comenta, você vai postar aquilo que você acha melhor, direito seu, da mesma forma que é direito meu discordar em partes do seu texto, temos que lutar contra a sociedade machista, temos que mudar o sistema republicano, mas não acabando com a hierarquia que isso se resolverá, mas sim acabando com o medo que as pessoas sentem em enfrentar aqueles acima de sua hierarquia.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Nara! Sim, sei quem é você rs! Então, eu preferi dividir o texto em tópicos e explicar separadamente algumas coisas porque realmente não acho que funcione assim: causa e consequência. A coisa é mais profunda. Existe violência, machismo e opressão em todos os campi e de diferentes formas. Eu vivi episódios de violência machista em república federal de Ouro Preto e também em república particular em Mariana, acho que a questão central não é essa e sim a trajetória desses universitários, como homens e mulheres são criados dentro da nossa cultura. Mas eu acho sim que existem mecanismos que naturalizam as opressões dentro desse ambiente universitário. Um desses mecanismos (que é uma luta e um entrave antigo na Ufop) é como algumas repúblicas aplicam a hierarquia. Realmente, a hierarquia existe em todos os ambientes e espaços da sociedade e eu não acho isso positivo sempre. Inclusive, se algumas pessoas não tivessem poder sob as outras, muitas violências não aconteceriam. Eu acho que principalmente dentro de uma casa e em relações pessoais isso não deve existir para que haja respeito, afeto e organização. Acho que a comparação de uma casa com um blog é meio equivocada, mas mesmo aqui no meu blog eu sendo a "decana" rs, qualquer pessoa pode vir e comentar e escrever respostas e se apropriar do que digo e criar outros discursos. Enfim... Eu também não acho que só o fim de algumas tradições republicanas acabe com opressão, eu acho que isso é apenas uma das coisas a serem feitas dentro da universidade. Eu citei outros exemplos de atitude que a Ufop pode tomar e além disso acho que a nossa luta é diária pela desconstrução da nossa cultura machista e também pelo empoderamento das minorias para enfrentar aqueles "acima de sua hierarquia". Mas eu realmente não consigo conceber como empoderar uma minoria a lutar contra quem está acima da hierarquia defendendo uma hierarquia. Acho que o primeiro passo para empoderar alguém é fazer com que essa pessoa enxergue que se um sistema te trata como menor, conteste esse sistema, busque a equidade e não se sinta menor.Não sei se deu para entender, mas sei que minha ideia/forma de luta não representa a de vocês da república nesse sentido. Mas quis manter a publicação do texto porque realmente achei um avanço no contexto da história da Ufop o posicionamento de vocês, e creio que todo o debate suscitado a partir da concordância ou discordância da minha opinião é positivo pra quem vive a Ufop hoje.

      Excluir